Era o terceiro filho, mas o cuidado parecia o mesmo de quem vive o primeiro. Ela queria fazer tudo certo, como se isso pudesse apagar os traços de um mundo que insiste em não dar certo para quem tem a pobreza tatuada na alma.
No hospital de referência, as paredes brancas cheiravam a assepsia e a descaso. A médica, experiente, olhou para Maria como quem avalia um caso clínico, e não uma mulher. Disse que não era hora da cesárea, que o bebê não estava pronto.
Mandou que ela voltasse para casa — sem considerar que, para Maria, voltar para casa era voltar para uma palafita, com a mãe acamada, o filho com síndrome de Down, o marido desempregado e os olhares carregados de quem sabe que o amanhã não traz alívio, só mais peso.
Três dias depois, o peso era insuportável. A cesárea veio tarde. O cordão umbilical, aquele laço que deveria ser de vida, tornou-se um nó de morte. Quando o bebê nasceu, já era tarde demais para tudo — exceto para a dor.
Um bebê lindo e gordo, o tipo que todos dizem “nasceu com saúde”. Mas não nasceu. Maria, em sua ingenuidade, mandou a foto do pequeno morto para a assistente social: “Olha como ele era bonito”, dizia a mensagem, como quem tenta provar para o mundo que a tragédia teve sua beleza interrompida.
Apática, sem condições de voltar à sua vida anterior — que de bela já não tinha nada — foi então medicada pelo psiquiatra da unidade de saúde: um remédio para acordar, um para dormir, e nenhum para viver.
Desde então, Maria só sabia repetir uma frase: “Taca remédio nela.” Era isso que saía em cada sessão com a psicóloga do CRAS. Quando perguntavam o que ela queria: “Taca remédio nela.” Quando falavam em futuro: “Taca remédio nela.”
O “nela” podia ser a médica, o sistema, a vida ou até ela mesma. Ou tudo junto. Era difícil saber. Mas Maria sabia. Sabia que o remédio não curava nada — só anestesiava.
Hoje de manhã, Maria acordou. Ainda era cedo, e a luz do sol entrava pelas frestas da casa de pau a pique. Espiou o espelho trincado pendurado na parede. Ali estava ela: um vazio de mulher.
Olhou fundo nos próprios olhos e sussurrou para si mesma: “Meu Deus, que sonho.” Mas não era um sonho de esperança. Era um sonho químico, desses que vêm em gotas de Rivotril. A vida parecia embalada em algodão.
E o dia seguia. Na casa apertada, o marido largado no sofá, a mãe resmungando de dor, o filho rindo de algo que só ele via. E Maria, com o corpo vazio, mas a mente cheia de ideias. Ideias ruins. Ideias de justiça torta. De vingança.
“Taca remédio nela”, repetiu.
Já tinha pensado em mil maneiras de matar a médica e se matar depois, mas viu na internet que os casos de mulheres que fazem isso são muito poucos. E ela, de tão excluída da vida, não queria participar de mais um grupo pequeno.
Não! Chega de exclusão. Queria mesmo era se integrar a algo maior — talvez ao cuidado que lhe foi tão docemente esquecido.
O remédio ainda batia forte. Voltou a dormir.
Talvez fosse isso: se a vida não tem cura, que venha embalada em sono. Porque dormir não dói. E no sonho — a não ser que seja pesadelo — não há médicos, nem cordões, nem relógios que marcam o tempo errado. Só um silêncio que parece durar para sempre.
Depois da psicóloga do centro de atendimento solicitar os prontuários médicos, os documentos chegaram: violência obstétrica constatada.
Contudo, aparentemente nada mudou — nem no sistema, nem no hospital, nem no pior de todos os campos: o coração da médica, que sequer parece carregar qualquer remorso. E com o perdão da sinceridade, caro leitor(a), talvez fosse ela quem não deveria ter nascido. Mas aí também esqueceríamos dos milhares de outros partos que ela fez e deram certo.
Existe de fato justiça? Se existe, é possível vê-la divorciada da vingança?
Papo de quem consegue acessar este texto. Porque Maria, ah, Maria não tem boca para palavras, não tem voz para diálogos. A boca de Maria é outra coisa: é um portal de remédios, uma âncora que desce amarga em silêncio.
Talvez porque, no mundo de Maria, as palavras já não curam, tamanha sua dor. Ou talvez porque, em mundos como o dela, as palavras nunca chegam.
Maria não tem boca para nada, só para tomar remédio.
Resta o psicotrópico — amargo, frio, imposto. E nós, que falamos, escrevemos e acessamos, o que fazemos com o silêncio de Maria? O que fazemos com tantas Marias que têm bocas, mas jamais terão vozes?
Autor: Dr. Luiz Fernando Montini, juiz de Direito da Comarca de Palotina.
Comentários: